“Minha Profissão É Tudo pra Mim”: Um Estudo dos Sentidos do Trabalho para Mulheres Policiais Militares do Estado de Roraima

Melissa Seelig Pamplona Barros ¹
Fernanda Ax Wilhelm ²


Introdução

Os sentidos do trabalho são um fenômeno multidimensional e dinâmico, que necessita de um olhar multidisciplinar (TOLFO; PICCININI, 2007). Dentre as contribuições para a temática dos sentidos, encontra-se as de Frankl (2016), para quem o homem está em uma busca contínua do sentido. Quando as pessoas não encontram sentido em suas vidas, podem vir a experienciar o vazio existencial.
Garcia e Henriques (2013) associam os sentidos do trabalho com oportunidades de desenvolver habilidades, conhecer forças e limitações. Ainda na visão dos autores, um trabalho que colide com os valores pessoais, que não oferece crescimento, reconhecimento e valorização do trabalhador, corre o risco de ser visto como um trabalho destituído de sentido. Em casos como esse, o trabalho pode tornar-se fonte de sofrimento.
Nesse contexto, menciona-se os policiais militares, por serem um segmento da segurança pública e parte de uma categoria profissional extremamente vulnerável ao sofrimento psíquico (PINHEIRO; FARIKOSKI, 2016). As exaustivas rotinas de trabalho, bem como a constante exposição ao risco, violência e morte são alguns dos elementos presentes nessa atividade policial que contribuem para ser considerada de alto risco e uma das mais sujeitas ao estresse (BEZERRA, MINAYO; CONSTANTINO, 2013; MARINHO et al., 2018).
Quando se trata de policiais femininas, outro aspecto apontado é a discriminação de gênero como fator agravante dos níveis de estresse (SOUSA; BARROSO, 2021). Esse fato remonta à reflexão de que o ingresso da força de trabalho feminina em ocupações tradicionalmente masculinas é marcada por obstáculos, demandando alta determinação e motivação para superar as barreiras associadas aos estereótipos de gênero (RIBEIRO, 2018; SÁ; LEMOS; OLIVEIRA, 2021).
Assim, por estarem inseridas em contextos laborais que, na maioria das vezes, são adversos e causam sofrimento psíquico, é que essa pesquisa buscou descrever os sentidos atribuídos ao trabalho por oito mulheres policiais militares do estado de Roraima.

Método

Tratou-se de uma pesquisa de orientação metodológica qualitativa, descritiva e exploratória que pretendeu compreender os sentidos do trabalho para mulheres policiais militares do estado de Roraima. A amostra foi por conveniência com emprego da técnica Bola de Neve, ou seja, por meio de indicações do círculo de colegas das pesquisadoras, foi feito o contato com as participantes iniciais que, por sua vez, indicaram outras participantes. Ao total foram entrevistadas oito policiais, com idades compreendidas entre 29 e 41 anos e de diferentes graus hierárquicos. Com o intuito de preservar a identidade e a privacidade das policiais, seus nomes reais foram substituídos por nomes fictícios. A Tabela 1 traz características gerais das oito militares entrevistadas.



Foi aplicado, de forma individual, um roteiro de entrevista semiestruturado com perguntas abertas que estimulassem as participantes a discorrer sobre os sentidos que atribuíam ao trabalho realizado. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa e somente deu-se início à entrevista semiestruturada após terem sidos obtidos os consentimentos informados das participantes por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Os depoimentos foram gravados em áudio, transcritos e analisados tendo por base a técnica de Análise de Conteúdo, descrita por Bardin (2016) como um conjunto de técnicas de análise focadas na descrição do conteúdo das mensagens. Os dados foram categorizados nas três dimensões de sentidos do trabalho propostas por Morin, Tonelli e Pliopas (2007): a dimensão individual, que abarca os sentidos do trabalho assumidos para a própria pessoa; a dimensão organizacional, relacionada aos sentidos identificados na relação da pessoa com a organização; e a dimensão social, que envolve os sentidos encontrados na relação da pessoa com a sociedade.

Marco Conceitual

Estudos demonstram que os policiais militares são uma categoria profissional com sintomas elevados de estresse, sendo que as mulheres são as mais afetadas (MARINHO et al., 2018; PINHEIRO; FARIKOSKI, 2016). Somado a isso, autoras apontam os obstáculos relativos à discriminação de gênero enfrentados por mulheres que ingressam no mundo militar (RIBEIRO, 2018; SÁ; LEMOS; OLIVEIRA, 2021).
Portanto, ao reconhecer o contexto, de certo modo, adverso em que essas policiais atuam, é que essa pesquisa pretendeu compreender quais os sentidos que prevalecem quando pensam a respeito do trabalho realizado na Polícia Militar.

Resultados

Os resultados encontrados foram categorizados em três dimensões de análise: pessoal, organizacional e social (MORIN; TONELLI; PLIOPAS, 2007).
Em relação à dimensão individual, os dados revelaram percepções do trabalho como algo que proporciona a satisfação, o crescimento pessoal e profissional, a autonomia e a subsistência. No que tange ao trabalho visto a partir de seu aspecto financeiro, Santos, Brandão e Maia (2015) sugerem haver uma relação significativa entre a escolha profissional e a remuneração. Os autores salientam a procura crescente por empregos no setor público, devido à percepção de maior estabilidade no emprego e a progressão assegurada na carreira, o que se relacionou com as decisões das mulheres, desta pesquisa, de investimento na profissão policial. É interessante notar que, embora a maioria das entrevistadas tivessem sido inicialmente motivadas por necessidades econômicas, houve um processo de ressignificação do trabalho expresso, por exemplo, na percepção de trabalho como identidade, marcada, principalmente, nos relatos de Mônica (38 anos) e de Laura (34 anos). As policiais verbalizaram que o exercício de sua função é também um modo de expressar seus valores, interesses e características de sua personalidade. Isto seria possível através de um sentimento de identificação com a profissão, em que a personalidade do trabalhador está alinhada às características de sua ocupação (Bardagi, Lassance, Paradiso, & Menezes, 2006).
A dimensão organizacional abarcou concepções do trabalho policial como desafiador e arriscado, conforme verbalizado por Naomi (40 anos). Para ela, o trabalho policial militar implica correr riscos diversos, inclusive o de perder a vida. Alessandra (35 anos) e Laura (34 anos) também destacaram os relacionamentos interpessoais satisfatórios enquanto um aspecto que faz com que o trabalho tenha sentido, o que vai ao encontro dos achados de Morin (2001). Além disso, de acordo com Silva e Simões (2015), uma reflexão aprofundada sobre a relação entre a organização e o indivíduo no mundo do trabalho é indispensável para compreender as demandas e valores individuais. Para as autoras, as organizações são espaços onde ocorrem relações interpessoais relevantes para o indivíduo, produzindo sentido à sua vida. As participantes também definiram o trabalho desenvolvido como uma atividade que gera resultados, que tem utilidade, pois conseguem perceber o impacto do que fazem por meio dos agradecimentos que recebem da sociedade. A questão da utilidade encontra respaldo na pesquisa de Morin, Tonelli e Pliopas (2007) ao destacarem a realização de um trabalho que tenha serventia para a organização.
Por fim, na dimensão social houve indicações do trabalho como forma de se sentir útil e de contribuir para a comunidade, assinaladas por sete das oito participantes. Os valores da corporação se manifestaram nas verbalizações das participantes, como pode ser observado no seguinte relato: “Acredito que a Polícia Militar é a barreira entre o caos e a sociedade, ou seja, é um fator primordial para que a sociedade esteja em ordem” (Andressa, 29 anos). Nota-se que poder servir à comunidade é gratificante para essas mulheres e motivo de orgulho da organização e do trabalho que fazem, conforme pontuado por Isabela (36 anos): “Eu me sinto orgulhosa da instituição e do trabalho que desenvolvo.” Sentir-se útil e importante, bem como poder cumprir com o que pregam os valores da organização, resultam em realização nas entrevistadas, sugerindo grande comprometimento com a carreira e uma construção de sentidos permeada pelos valores institucionais de servir e proteger a sociedade.

Considerações Finais

De modo geral, foi possível verificar que o trabalho assumiu alta centralidade nas vidas das policiais. Vale destacar as dificuldades enfrentadas pelas profissionais desse estudo, expressas, por exemplo, na privação do sono e na desconfiança masculina de suas capacidades. Ainda assim, os relatos evidenciaram a predominância de sentidos do trabalho positivos traduzidos na satisfação pessoal, aprendizagem, independência financeira e a realização que sentem por exercer um trabalho percebido como socialmente relevante.
Diante dos resultados encontrados, ressalta-se a importância dos estudos sobre sentidos do trabalho para compreender o engajamento, o comprometimento e a motivação dos indivíduos com seu fazer profissional (GONÇALVES et al., 2020). Além disso, discute-se a constituição dos sentidos do trabalho em possibilidade prática de ações em saúde do trabalhador, favorável à resiliência nas organizações, pois a busca de sentido é considerada um importante fator de proteção em situações de risco à saúde mental (VANISTENDAEL; LECOMTE, 2004 apud BARLACH; LIMONGI-FRANÇA; MALVEZZI, 2008).

Referências

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BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2016.
BARLACH, L; LIMONGI-FRANÇA, A. C.; MALVEZZI, S. O conceito de resiliência aplicado ao trabalho nas organizações. Revista Interamericana de Psicologia, v. 42, n. 1, p. 101-112, 2008.
BEZERRA, C. de M.; MINAYO, M. C. de S.; CONSTANTINO, P. Estresse ocupacional em mulheres policiais. Ciência & Saúde Coletiva, v. 18, n. 3, p. 657-666, 2013.
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GONÇALVES, J.; SCHWEITZER, L. P.; PEREIRA, E. F.; TOLFO, S. R. Sentidos e significados do Trabalho. In: TOLFO, S. R. (Org.). Gestão de pessoas e saúde mental do trabalhador: fundamentos e intervenções com base na Psicologia. 1. ed. São Paulo: Vetor, 2020. p. 277-294.
MARINHO, M. T.; SOUZA, M. B. C. A. de; SANTOS, M. M. A.; CRUZ, M. A. de A. da; BARROSO, B. I. de L. Fatores geradores de estresse em policiais militares: revisão sistemática. REFACS (online), v. 6, n. 2, p. 637-648, 2018.
MORIN, E. M. Os sentidos do trabalho. Revista de Administração de Empresas, v. 41, n. 3, p. 8-19, 2001.
MORIN, E.; TONELLI, M. J.; PLIOPAS, A. L. V. O trabalho e seus sentidos. Revista Psicologia & Sociedade, v. 19, p. 47-56, 2007.
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SOUSA, T. F. de; BARROSO, W. W. X. Síndrome de Burnout relacionada ao impacto do estresse na vida do policial militar. Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciência e Educação, v. 7, n. 10, p. 1740-1763, 2021.
TOLFO, S. da R.; PICCININI, V. Sentidos e significados do trabalho: explorando conceitos, variáveis e estudos empíricos brasileiros. Psicologia & Sociedade, v. 19, n. 1, 38-46, 2007.

¹ Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Roraima. Mestre em Psicologia das Organizações e do Trabalho pela Universidade Federal de Santa Catarina.
² Pós-doutorado em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora efetiva do curso de Psicologia da Universidade Federal de Roraima.
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